Parece-lhes impossivel ter crescido num mundo sem telemóveis, hi5 ou centros comerciais e ficam extansiadas com a pré-história que foi a minha adolescência nos idos anos setenta e tal oitenta. Que faziamos, que falávamos, que música ouviamos, por onde passeávamos e namorávamos num mundo que lhes parece era parado, amorfo e sem interesse.
Falei-lhes de quilometros e quilometros à boleia para colar cartazes de espectáculos, de dias inteiros de Meia-Praia, da descoberta da cidade grande, dos namoros de Verão, das viagens de comboio todos os fins-de-semana entre Lisboa e Lagos, dos amigos e das músicas do Barimbar, das cartas chegadas e enviadas, do LP duplo do Simon e Garfunkel no Central Park, do Cinema Império e dos filmes poucos que por lá passavam, da Casa das Artes onde passei semanas de tardes a ler, dos passeios pelas arribas do Pinhão à Ponta da Piedade, do viver num quarto alugado e numa residência universitária, partilhando livros, experiências, saberes e comeres, da corrida do Hot Club até ao Cais do Sodré para o último comboio, dos almoços pelos jardins de Lisboa, das noites inteiras de conversa e de cantigas, da piscina e da pista de dança do Charlie Chilly da Aquazul, do regresso a pé da Horta2, dos banhos no canal da barragem em Arão, dos tantos casamentos em que toquei a Marcha Nupcial e a Oração de São Francisco, da minha banca no mercado da reforma agrária a medir tensões arteriais, da recolha de estórias, modas e mézinhas que fiz com os idosos da Santa Casa, de dormir ao relento, de ir à biblioteca buscar livros, de gravar cassetes com as músicas preferidas, de amar perdidamente e não ser correspondida, dos autocarros verdes de dois andares, do barquinho a remos para a Meia-Praia, de acordar de madrugada para ir à maré ao Rio de Alvor, da alfabetização de mulheres imigrantes, de amassar e cozer pão no forno de poia de São Marcos, de fazer brincos e pulseiras de missangas e arame cobreado, de ir à vindima aos Matos Brancos, de varejar amêndoas na minha Atalaia, de fazer babysitting a miúdos estrangeiros, de ler o Papalagui na Praia dos Estudantes, da desilusão que foi a Costa da Caparica, dos cafés intermináveis no Abrigo e na Britaica, das vidas contadas às escuras, dos acampamentos na Praia da Adraga, das muitas directas a estudar e a fazer trabalhos de grupo, do nascer da paixão, do gosto pela novidade e do eterno vício de sonhar acordada.