quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Um ano

Hoje contava madrugar na Portela, esperando-te e mais a todas as estórias que trarias nas palavras e nos silêncios dum ano inteirinho em terras africanas.

Durante estes meses escutei-te nos meus sonhos. Soletrando ditongos, tecendo longos panos coloridos, trauteando aquelas tuas músicas sem palavras de verdade e que falam a verdade toda.

Era quase Fevereiro. Encaixotámos vidas naquela última tarde. Nem eu nem tu queriamos acreditar que o dia tinha chegado. A viagem do bairro ao aeroporto entre lágrimas e abraços, no meio duma multidão de carros, buzinadelas e mensagens de quem bem nos quer.

Deste-me o livro a guardar e foste ali. Sabiamos ambas que era a deixa da despedida. Depois, fiquei lá, bebendo cafés e esperando, quase querendo acreditar que podias não ir. Voltei para casa devagar, voando contigo lá em cima, a caminho do sonho feito real.

Passou um ano. Encontraste o caminho da tua felicidade e também o amor. E o que eu mais quero é que seja para sempre. Um dia destes a malta encontra-se por aí.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Coisas boas I

Chegou carta da Fatuxa, lá do Namibe. Lá dentro trazia o calor das mãos, dos beijos e do riso da codé de Nha Nézinha. Trazia os losangos de doce de mancarra que me fazem perder o juízo e trazia os olhos vivos e o sorriso manso do Velho Serafim numa bolsinha cheia de mucua.

Faz anos, acho quase nem Fatuxa tinha nascido, estava eu acabadinha de formar e de ser mãe e fui ensinar homens feitos, nas artes de bem vender refrigerantes e outros que tais.

Era ali perto da Damaia, logo depois da última paragem do 46, depois de atravessar um bairro abarracado que hoje bem sei nomear. As aulas começavam às 18:30h, assim noitinha que o Outono por lá já andava. Saía do autocarro e ia caminhando, devagar, num misto de curiosidade e de receio do desconhecido. Por entre ruas estreitas e esgotos a céu aberto brincavam crianças. Às vezes seguiam-me . Enrolavam-se nos meus longos vestidos floridos e brincavam com o meu par de tranças. Corria e cantava com elas, como que a afugentar o medo. Com o tempo fui ganhando confiança, retribuindo as boas tardes que ia recebendo e fazendo paragens para dois dedos de conversa. Foi assim que conheci o Velho Serafim.

Sempre sentava na soleira da última porta da terceira rua. Talhando madeira. Dessas figuras que depois se vendem por aí e regateiam por tuta e meia. Eram bonitos os personagens que lhe saiam das mãos. Muito magras e enrugadas. Guardo um pastor na ponta dum pau que me prendeu o cabelo anos a fio. Comia xerém e funge porque os dentes, só dois, não chegavam pra mais. O sorriso iluminavam-lhe o rosto quando boas eram as notícias do jornal que lhe lia e soltava gargalhadas por me ver enrolar cigarros à maneira de pobre, dizia ele.

Fumava cachimbo, cheirava rapé e chupava mucua. Durante algum tempo resisti a experimentar o fruto. Achava podia ser alguma droga esquisita. Hoje, quando sinto o sabor ácido do filho de imbondeiro, entrefecho os olhos para melhor ouvir o Velho Serafim dizendo que mucua alivia tristeza e leva choro de olho sadio pra mar salgado.

 
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