quarta-feira, 24 de junho de 2009

do fundo do coração

Escrever cartas a quem se ama é sempre um bom incentivo para aprender a juntar letras e formar palavras. Tem sido assim, todas as manhãs cedo, enchendo folhas de papel pautado enquanto o parque acorda e os telefones ainda não tocam. Cartas de saudade, de desabafo, de reeinvindicação, de amor sonhado. Umas vezes de verdade e outras assim a modos que de faz de conta mas, sabemos ambas, é nessas que o coração solta a mordaça, fala solto e nos deixa a cabeça à roda, cheia de dúvidas e de vontade de traçar novos caminhos.

Se calhar devia ensiná-las a escrever só cartas de mentira, daquelas que começam por "Queridas primas, Desejo que esta carta as vá encontrar de boa saúde que eu estou bem graças a Deus", que terminam com "muitos beijos e abraços desta prima que muito vos estima" e que pelo meio falam do sucesso do emprego dos filhos, de como os netos vão bem na escola, da televisão nova que acabaram de comprar e do bom que é viver na Europa.

Mas essas são as cartas que depois da lição são deitadas no marco do correio. As outras, as que nunca são enviadas, falam das fraquezas, da pobreza, dos maridos ausentes, da falta de amor, da luta de cada dia, das patroas, do frio do Inverno, da demora dos documentos, da sede de afago,daquele aperto no peito que tira vontade de tudo e do grito rouco que vem lá do fundo e dá aquela força de continuar a acreditar em amanhãs melhores.

Esta noite, quando todos dormirem, vou escrever-me uma carta.

ssss


quinta-feira, 18 de junho de 2009

primeira vez

Por mais vezes que se fale da primeira vez, jamais alguma primeira vez perde o sabor da novidade e o arrepiozinho do desconhecido.

É o primeiro dia de escola com tantos novos amigos, a professora, boa ou má que nunca vamos esquecer e aqueles recantos de recreio que se vão tornar a nossa casa;

O primeiro amor, que brilha mais que a estrela mais brilhante que agora vislumbro pela janela escancarada ;

A perda do carrinho mais veloz que se acidentou escadas abaixo, a mancha de tinta verde no vestido preferido, o primeiro dente de leite a abanar, o nosso nome escrito em letra de mão e sem ajuda no caderno diário, as manhãs as tardes e as noites que passam a ser tantas horas e tantos minutos, lidos a custo num mostrador de relógio, a bicicleta que finalmente deixou de tombar e aquele miúdo parvo que não nos sai da ideia.

A descoberta do próprio corpo, o prazer e a dor da paixão, a primeira saída à noite com os amigos, de cigarro e cerveja em punho, ainda com horas de voltar mas com chave de casa no bolso, o calor do desejo e a pressa de o calar.

Ir de férias sem escolta, tirar a carta, subir saias e descer decotes à medida da moda e dos desejos de cada dia, ganhar a vida, descer a rua de saltos altos, despedir o acne, votar, atravessar o Tejo de cacilheiro, negociar o aumento de salário, jantar à luz de velas, dar sangue, dormir ao luar, separar o lixo, fazer greve, usar óculos, adormecer no comboio, ir à Meca sonhada ou simplesmente pintar as unhas das mãos.

terça-feira, 16 de junho de 2009

ser mãe

há exactamente vinte e um anos, por esta hora, desciamos a avenida da liberdade com destino ao cais do sodré. no vagar do caminho subimos no elevador de santa justa e deixamo-nos ir atrás dos sonhos. no passadiço para o carmo demoramo-nos em longos beijos e abraços apertados. lá em baixo, na rua garrett, encostado a umas floreiras que lá havia, um jovem flautista tocava uma melodia que ainda hoje guardo, acho que no coração. no céu brilhava uma lua quase cheia e a brisa soprava de mansinho, levantando o vestido leve e florido que me cobria. apanhámos o último comboio e regressámos num dos primeiros. de mala na mão, aperto no peito e uma espécie de receio do desconhecido desejado que estava mesmo já a bater à porta. lutámos pela liberdade entre gritos e penumbras. num repente de dor aguda fez-se à vida. senti-o quente e húmido sobre o meu peito. pulsando vida.
a nossa vida.
mmm

segunda-feira, 1 de junho de 2009

gente pequena

Dizia o poeta, que acho nem era muito chegado à gaiatada, que o melhor do mundo são as crianças. É. E bom mesmo é aquele bocadinho de gente pequena que vamos mantendo de saúde mesmo quando já somos gente grande. Aquele lado do disparate, dalguma inocência, de ter um gozo do caraças ao chupar um gelado de gelo ou ao inventar aquelas estórias fantásticas que viram vida de verdade.

Cresci filha única e fui ganhando irmãos com o correr dos anos. Coisas de coração. Além dos meus três rapazes há sempre um corropio de miúdos lá por casa e sobrelotando a carrinha, falando uns mais alto do que os outros num frenesim de quem tanto tem para contar que nem quer saber se é ou não ouvido.

Tropeçam em berlindes e em palavras, apertam-se em
abraços e em lutas, zangam-se, fazem cara feia e as pazes, dão mais abraços e prometem paz para o sempre que é já dali a bocado .

Vamos de barco até Almada para ver o Cristo-Rei bater as palmas, mas sempre chegamos depois da hora. Pelo caminho aproveitamos para contar alegrias, medos e truques de escrever cartas de amor em código, com sumo de limão e deitá-las na Praia de Santo Amaro ao cair da noite da próxima lua cheia.

Falamos de coisas sérias e obrigações. Pedimos humildade, educação, trabalho na escola e no pavilhão, respeito pelo próximo, cumprimento de regras e mais aquelas cenas todas que até nós sabemos são peso demais para quem ainda acredita que o mundo é lindo, ridondo e de todas as cores.

Ontem, no palco grande das Festas do Concelho de Oeiras, os miúdos do Centro Comunitário do Alto da Loba encheram-nos o coração. Crianças de diferentes nacionalidades apresentaram danças tradicionais dos vários países de origem. Africanos bailando e falando russo, brasileiros dançando o luso regadinho, moldavos rebolando num funaná a preceito e todos juntos, sambando, cantando, de mãos dadas pela amizade imensa que os une.

Às vezes, no fim do dia, não nos sobra quase nada mas acho já não seríamos capazes de viver longe desta algazarra, né mana? Eu chamo-lhe tempero. Tu chamas terapia. Há quem chame loucura ...
 
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