sábado, 27 de outubro de 2007

Bazar por aí ...

Faz tempo que de quando em quando me roubo para mim. Muitas vezes é difícil porque isto de ser mãe de três e de mais alguns e filha só de pai e mãe acarreta tempos quase sempre reclamados, mesmo quando é suposto o período ser de férias.

Fui arranjando umas artimanhas e lá me safo de quando em vez. Para estar comigo, eu e eu e juntas pensarmos na vida e gozarmos uns momentos de sossegado prazer. Foi assim que fui descobrindo praias e lugares por aí perto, daqui ou de lá, por forma a que as ausências não tenham que ser fugidas.

Tem vezes basta um pequeno-almoço à babuja da Adraga para carregar baterias mas tem outras que só isso é Água das Pedras. Então subimos serra acima pra lá da Peninha, despedimo-nos da lua em dunas vicentinas ou ouvimos o silêncio na penumbra de cedros que resmalham baixinho.

Nem sempre as neuras se vão nestas andanças. Mas sempre se desamarrotam.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

barIMbar

Eramos todos jovens, alegres, giros e cheios de vontade de mudar o mundo.

O Barimbar juntou-nos. A música, o ambiente solto, o Zé Rijo fizeram o resto. No Verão de 1983 a vida de muitos de nós girou à volta do Barimbar, lá em Lagos, na esquina da Rua dos Quarteis. O painel de azulejos, circular, lá continua. A música agora é que é outra...

Aqueles meses de colagens de cartazes Algarve fora sempre à boleia, de longas noitadas de cantigas e conversas, de promessas de amor eternas, do soalho a ranger sob os nossos pés descalços lá na casa em frente à igreja, das orelhas furadas com agulha e pedras de gelo, da sangria e do Português Suave sem filtro, da cesta das compras da Lena e do seu mau feitio, do colete do Sim-Sim, das maluqueiras do Dário, da simpatia do Pedro da porta (http://www.afinador.blogspot.com/) , das camas desfeitas de ninguém, da chegada do postal do pai do Mário "Há Barimbar, há ir e há voltar", das fotografias a preto e branco reveladas numa casa de banho da Reboleira, dos vestidos indianos e dos cabelos e brincos ao vento, dos beijos nos lábios dos muito amigos, das saladas coloridas, da Renault 4L cor-de-laranja com muitos ao molhe lá dentro, dos desenhos nas mesas, dos jantares no Vila, das partidas de comboio e das lágrimas e abraços nas despedidas, fará sempre parte das boas coisas que nos aconteceram.

Para muitos de nós foi o ano de viragem. Das primeiras férias à solta, da entrada para a universidade, da profissionalização na música, da saída de casa dos pais para quem não era da cidade grande. No CascaisJazz logo a seguir combinámos todos no Estoril. Em cada estação entravam mais uns quantos. Foi uma festa. Depois os encontros foram rareando e o acaso foi-nos cruzando em Festas do Avante, no Hot Club, em espectáculos mais jazzísticos, nos anos do Paleka, por aí.

Vamos tendo notícias uns dos outros por uns e outros e é fixe sentir que apesar de já estarmos todos cotas, com uns quilos a mais ou muitos cabelos a menos, continuamos a lutar por sonhos há muito desenhados.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Mundo mix

Esperando a miudagem chegar pra caminharmos pros treinos, aproveito o sol gostoso de fim de dia, sentada num degrau do quintal, cantarolando e comendo amendoins.

- Hei, tu comes mancarra (amendoim)?
- Como. Queres?
- E não te enjoa doce de côco, pois não?
- Não. Queres alcagoitas?
- Tu deves ser de Cabo Verde.
- Não, sou tuga, mas lá do Algarve.
- É mentira. Comes mancarra, fazes cachupa, mandas bocas em crioulo...
- Não eu sou mesmo de cá. Tuga, tuga.
- Deves ser da Guiné - arrisca o Délcio.
- Eu nasci lá no Algarve e depois vim pra cá e pronto.
- Tás a mentir, não tás?
- Olha lá bem pra mim, de que côr é que eu sou? - não é que isso signifique alguma coisa. Mas aí a minha rosácea de estimação traiu-me.
- És vermelha. - diz o Luís
- Aí, a São é d' América, é pele vermelha!

A Gália e eu conhecemo-nos há vários anos, nas escadas do prédio onde morávamos. Ficámos amigas. É moldava, toca maravilhosamente violino e ensina meninos a tocar e, principalmente, a gostar muito de música. Dizia-me ela:

- Padruska (amiga), acho tu não és bem portuguesa.
- Ai é?
- Ontem eu te perguntei a que horas almoçavas e tu me respondestes que nem sabias, que era quando desse jeito ou quando a malta tivesse fome.
- E isso é não ser portuguesa?
- Isso é ser um bocadinho russa. Os portugueses sempre têm hora muito certa para tomar as suas comidas.

São bocadinhos de vocês que guardo no coração. Beijos gordos.

sábado, 13 de outubro de 2007

Contar parte

Nha Nézinha gostava de sentar junto do povo jovem e de contar parte. Parte lá da terra do lá longe, parte de bandido fugido de bófia e caçado por mais bandido que a si, parte de quando Zé Mindelo a tinha ido pedir ao pai e com o nervo bebeu grogue demais e chorou de grosso e muita parte com filhinhos pequenos presos à saia e à chupa de mamã.

Gostava de agradar Fatuxa, filha codé (mais nova), única em casa cuidando. Embarrigara de Fatuxa já mulher partida pra velha e tivera choro grande de desgosto. Vergonha de mulher parida avó de netos homens feitos.

Nasceu de olho aberto e goela escancarada a cachopa. Havera de ser mulher pra vida dissera doutora que a trouxe pro mundo. E era. Professora diplomada, dessas de ensinar a ler e a escrever criança pequena e grandes também.

Até mamã já assinava o nome e lia cartas chegadas do lá longe. Mas o estado nunca mais mandava postal dizendo que tinha escola pra ela ensinar meninos. Então ela ia no shopping e ganhava arrumando tabuleiro de comida. Depois voltava e nha Nézinha lá estava, sentada, contando parte. Fatuxa ia só num instante comer bucha e trazer viola. Encostava na perna da mãe e tocava as mornas mais choradas do bairro.

Um dia, nha Nézinha não acordou mais. Fatuxa fez a trouxa, pegou na viola e foi pro lá longe. Era quase Fevereiro. Lá no Namibe ela foi ensinar. E contar bué parte também.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Porquê o meu silêncio?

Mais ou menos a meio da manhã chegava. Às vezes, quando vinha.

Durante anos foi assim. Outonos, Invernos e Primaveras. No Verão as férias levavam-nos para lá dos muros da escola e perdia-nos e perdiamos-lhe os rastos.

Nunca aprendeu a ler ou a escrever, a jogar à rabia ou a saltar ao eixo. Contava estórias que achávamos estranhas mas quase sempre o ouviamos. Nem sempre com carinho, vezes com pontas de troça ou de desdém. Era um mundo de ilusão numa cabeça que se recusava a crescer, pensava eu.

Passaram muitos anos. Li num jornal. Pedofilia. Não era ele quem lá estava, mas todos eles tinham o seu rosto. Parece o ouvia contar, sentado no banco ao lado do portão da escola velha. A voz fanhosa enaltecendo as tropelias noite fora Praia da Batata dentro. Chamava-lhes chapagem. Ria-se. Falava em dinheiro e em roupa nova oferecida por cámones panascas. E fazia "Schschiu!!" pra não contarmos a ninguém

Achei era estória. Não contei nunca.

Afinal devia ser tudo verdade. E eu devia ter falado.

Bem alto!
 
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