sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

As primas Marias

Tem dias assim. nostalgia pura.

Adormeço e acordo ao som daquele mar forte de sul que entra pelo molhe da Solaria, põe as gaivotas loucas, os pescadores em terra e me deixa de alma lavada;

Por caminhos e carreiros, entre urze, estevas e giestas, lá fomos, de prima em prima, revivendo velhas estórias, cheiros, caras e sabores. Todas nos setenta, todas viúvas, todas sós e cheias de vida em ermos perdidos na serra algarvia. Sob a nevrinha colhemos laranjas, poejos e rosmaninho. Ao calor da braseira falaram da grandeza dos martuzes com mel no combate à tosse, da água que se deve beber morna para evitar males na veia d´urina, dos filhos, dos netos e dos bisnetos que as visitam mas que não desejam nas lidas da terra nem dos cortiços, querem-nos lá em baixo, no Algarve, onde há hoteis, turistas, trabalho limpo , não se acorda ao nascer do sol nem se recolhe ao piar do mocho.

São tão bonitas as primas. Morenas e enrugadas por décadas de sol, despachadas e trabalhadeiras, cabelos alvos cobertos por lenço negro e chapéu de palha debruado a fita escura, de olhos muito brilhantes e sorriso aberto. Sábias e adivinhadoras de sonhos. Abraçam com fervor e cantam com doçura.

Encantam-me sempre. Comovem-me também.

Isabel volta depressa. vamos até lá cima,aos Gregórios, que a prima Maria José sabe dum chá de alecrim que afoga até as tristezas desenganadas.

quem ???

Mais ou menos a partir dos 25, 26 anos, às vezes mais uns quantos, quase deixam de nos perguntar a idade. melhor assim, faz conta não se vê bem o tempo a correr e toca de lhe fugir atrás não vá ele ir longe de mais. com o passar dos anos e o crescer da família somos assim mais ou menos agregados ao alguém que dá mais jeito nesta ou naquela situação.

Começamos por ser o marido ou a mulher de, que digo eu por minha conta, ao fim de vinte e tal anos de comunhão continua a soar-me estranho. nas escolas e nos consultórios passam a tratar-nos por "mãe" ou "pai" como se fizessem parte do agregado e para todos os miúdos e adolescentes da escola, do clube, dos escuteiros, da rua e mais aqueles que nem sabemos donde nem quem são seremos eternamente a mãe ou o pai do ou da consoante o género.

Daí a minha estranheza a tanta questão acerca da minha pessoa em menos de vinte e quatro horas. perguntaram nome, morada, telefone, profissão, data e local de nascimento e idade também não fosse ter aldrabado e tirado uns poucos de anos, estado cívil, nome do cônjuge - que eles sempre dizem cônjugue - e se era pai dos filhos e se estes eram maiores, menores e não perguntaram o sexo nem a cor dos olhos e do cabelo, o peso, a altura e o nível de colesterol porque não se devem ter lembrado. Curioso é que em nenhuma altura me foram solicitados os documentos do veículo, comprovativo em como eu era a proprietária ou a minha própria carta de condução. Eu acho que não é crime ter apresentado queixa dos presumíveis vândalos que me assaltaram o carro. ou será que é?

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

cinzento escuro

afinal a minha cidade já não é aquele lugar aprazível e pacato que sempre espero encontrar no inverno. ao sol posto as ruas ficam desertas, silenciosas e tristes como se esperassem a morte. entre postigos e portadas já só espreitam avós, assim meio a medo, na penumbra da viuvez que deixou de ser alheia. e eu que me sentia segura. aqui. em qualquer canto e em qualquer duna. em lagos. na minha cidade. enraiveci de espanto. de surpresa. acho que de desilusão até. desembaciei. depois do assalto de hoje fugi pró mar e contei-lhe das muitas pedras que faltam nas calçadas do nosso burgo.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

à noitinha no casino

Que cena! Eu não sabia, mas os casinos são mesmo como nos filmes, assim tipo entras na cena e já lá estás, parece nem és bem de verdade que és praticamente assim uma espécie de sombra ou de olho atrás da câmara que anda por ali a topar a coisa como quem não quer nada. E os mânfios e as mânfias com ar muito esgazeado e olhos completamente vidrados em rectângulos pejados de desenhos coloridos mais ou menos repetidos, devorando cigarros e mais cigarros, amontoando beatas em cinzeiros laterais género aquelas sarjetas gradeadas com ratazanas à espreita.
Que cena! Seres femininos de ar angelical mas certamente aparentados de demónio circulam, deslizando sorrisos e bandejas repletas de copos meio vazios ou meio cheios de ouro ou talvez urina made in Scotland. As luzes refletem no chão o tecto de estrelas e ilusões que faz acreditar na impossível probabilidade de ter chegado o tal dia, na tal máquina, àquela hora, com a mão esquerda fechada em figa, a boca entreaberta em reza e um minuto e meio sem respirar. Afinal inspirou cedo ou tarde demais, a mão não estava suficientemente apertada contra o polegar, a reza não era bem aquela, o dia era de ano bissexto e o relógio devia ter a pilha fraca. Azares. Novos dias virão. Antes não.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

sempre a rolar


Às sextas, depois das aulas acabarem, o Luís e o Mariano inventaram o Clube das Engenhocas da Escola de São Bruno. A rapaziado foi-se chegando e, pouco a pouco, foram dando à luz uns poucos de carrinhos de rolamentos, mesmo daqueles em que todos nós já descemos as rampas do nosso bairro, esborrachámos dedos e rasgámos as calças que a nossa mãe nos tinha dito para não vestir porque eram quase novas e podia haver um acidente, daqueles que acontecem mesmo sem querer.

Dois domingos atrás fomos experimentar os carrinhos rampa abaixo, no lugar onde iria acontecer o Grande Prémio Esferacar de Barcarena, assim tipo aprender a andar e treinos de reconhecimento de pista. Encantaram com uma manhã inteira de desce a rolar sobe a puxar, come bolacha, trinca maçã, piropo pra cá, estória pra lá. Nem o frio nem a humidade nem tão pouco o acordar assim quase de madrugada em dia de dormir até meio-dia, demoveram estes aprendizes de campeões.

Neste sábado, pilotos de Caxias e da Outurela, partilhando viaturas, capacetes, luvas, lanches, ajudas e amigos, fizeram-se ao alcatrão. O Adilson soprou-me no ouvido que tinha o sonho de ter um carrinho daqueles, assim só dele para brincar quando tivesse vontade. Parece o vento ouviu, contou à brisa e ela bisbilhotou a gente amiga. Quando os deixei na Outurela, junto ao Clube Jovem, o Adilson subiu a rua, inchado de orgulho, puxando a viatura pela cordinha e prometendo à passagem que ia deixar todos andarem, só em ruas sem carros a circular nem estacionados, porque era esse o acordo que tinhamos estabelecido.
Foi tããão fixe!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Peripateticando

O sol voltou e eu, a bem dizer, renovei.

Não há janelas abertas nem passarinhos a cantar nos beirais que nos alegrem quando lá ao fundo a serra espreita, assim como que a piscar o olho espicaçando-nos para umas corridas com vista pró mar do Guincho.

Esta tarde fomos brincar aos peripatéticos. Peri quê? Andar por aí, caminhando, à conversa e ir aprendendo uns com os outros. Agora sim, toda a gente percebeu o que é uma raiz fasciculada tuberculosa, um caulo cilíndrico com medula, a diferença entre simetria e assimetria, entre estame e carpelo e até quando começou e acabou a primeira república. Aproveitámos e enquanto subíamos direitos à Peninha fomos treinando multiplicações com muitos e poucos zeros antes, depois e até sem vírgulas.

Sentimos o frio muito frio que o vento trazia empoleirados numas pedras gigantes que apostámos serem meteoritos caídos do céu, ouvimos o barulho do silêncio e o resmalhar das folhas, respirámos devagarinho e com muita atenção para treinar o portar bem na sala de aula, brindámos às negativas a descer e às positivas a subir com copos muito pequeninos a derramar de icetea, corremos descida abaixo e de calhau em calhau, descobrimos bué de verdes diferentes uns dos outros e colhemos uns ramos cheios de bolinhas amarelas para trazer para as mães. Descobrimos depois que as flores de acácia além de lindas também são muito malcheirosas ...

Na volta passámos no Guincho e despedimo-nos do sol, muito cor-de-laranja quase vermelho a afundar-se no mar lá tão ao fundo que já devia ser horizonte. Assim muito rápido. Estava ali e pronto passamos o forte e já não estava, parece já devia estar a acordar na China com despertadores a tocar e miúdos a irem para a escola para aprenderem a história de lá, língua chinesa e ciências e matemática que devem ser iguais mais ou menos em todo o lado.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

devaneios

apetece-me um dia inteiro sem chover. já nem peço setembro em fevereiro nem primavera no entrudo. era só mesmo assim um dia inteirinho sem chuva. até podia fazer frio, que o sol brilhando sempre aquecia um poucochinho. podia até roubar-me um meio dia acrescentado e descer para espreitar mar a sério. com cheiro e alma. aproveitava e do outro meio dia já ratado fazia aquelas horinhas de formação prometidas para sines que é logo ali à banda de cima de s. torpes, seguindo a estrada à babuja da areia desde a entrada da barca. ou ao contrário. e depois, como era de caminho até parecia vinha a calhar.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

do Lat. futuru, que há de ser

transgredir
do Lat. transgredere por transgredi
ir além do que é permitido;

infringir;
postergar;
deixar de cumprir lei, preceito, dever ou ordem.

amar
do Lat. amarev. tr.,
ter amor a;
gostar muito de;
desejar;
escolher;
apreciar;
preferir;

viver

do Lat. vita
ter vida;
existir;
durar;
habitar, residir;
alimentar-se;
nutrir-se;
comportar-se;
ter relação com;

felicidade

do Lat. felicitates. f.,
ventura;
bem-estar;
contentamento;
bom resultado,
bom êxito;
qualidade ou estado de quem é feliz.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

chegou carta, mucua também

Nha Nézinha gostava de sentar junto do povo jovem e de contar parte. Parte lá da terra do lá longe, parte de bandido fugido de bófia e caçado por mais bandido que a si, parte de quando Zé Mindelo a tinha ido pedir ao pai e com o nervo bebeu grogue demais e chorou de grosso e muita parte com filhinhos pequenos presos à saia e à chupa de mamã.

Gostava de agradar Fatuxa, filha codé, única em casa cuidando. Embarrigara de Fatuxa já mulher partida pra velha e tivera choro grande de desgosto. Vergonha de mulher parida avó de netos homens feitos.

Nasceu de olho aberto e goela escancarada a cachopa. Havera de ser mulher pra vida dissera doutora que a trouxe pro mundo. E era. Professora diplomada, dessas de ensinar a ler e a escrever criança pequena e grandes também.

Até mamã já assinava o nome e lia cartas chegadas do lá longe. Mas o estado nunca mais mandava postal dizendo que tinha escola pra ela ensinar meninos. Então ela ia no shopping e ganhava arrumando tabuleiro de comida. Depois voltava e nha Nézinha lá estava, sentada, contando parte. Fatuxa ia só num instante comer bucha e trazer viola. Encostava na perna da mãe e tocava as mornas mais choradas do bairro.

Um dia, nha Nézinha não acordou mais. Fatuxa fez a trouxa, pegou na viola e foi pro lá longe. Era quase Fevereiro. Lá no Namibe ela foi ensinar. E contar bué parte também.

Continuo a escutá-la nos meus sonhos. Soletrando ditongos, tecendo longos panos coloridos, trauteando aquelas suas músicas sem palavras de verdade e que falam a verdade toda. Fatuxa não voltou porque o caminho do ser feliz nela se encantou e sua lhe chamou.

Passaram dois anos, mais dia menos dia.
 
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