sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Banho 29

A 29 de Agosto, em Lagos e noutros lugares do Algarve é costume os serrenhos e os mareiros se banharem no mar depois do sol posto.

Vinham de burro, com os alforges cheios das iguarias da serra, cantando e rindo estradas fora, direitos às praias. Dizia-se que este banho valia pelo ano inteiro e dava saúde da boa.

Hoje em dia o corropio às praias na noite de 29 de Agosto mantem-se mas, as camisas de dormir e as cerolas são só pra lembrar os antigamentes.

Desde sempre cumpri o ritual do 29. Primeiro com os meus pais e família, na adolescência com os amigos, entre fogueiras, guitarras e sol nascido já a 30 e depois mostrando aos filhos o gozo que é mergulhar na escuridão do mar, correr para embrulhar em mantas e devorar o arroz de tomate fumegante que sempre fez parte do nosso farnel.

Foi assim este ano. No Porto de Mós, mais abrigado que a Meia Praia. Faltou a fogueira. De resto esteve quase tudo. Até a lua tinha enchido de véspera. As crianças pequenas foram partindo quase adormecidas, a cantoria tornou-se mais suave e menos efusiva, a areia muito morna, apenas algumas empadas, um pouco de tintol e um panelão de sopa completamente vazio repousavam por ali.

Se entrefechar os olhos ainda ouço o "Woman no cry" ou o "Samba pa ti" que o nosso Zé fez a guitarra chorar. Beijos pessoal. Até pro ano!

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Ti Agostinho

Quando em férias, gosto de me sentar no Largo Gil Eanes, pela manhãzita, a ler o meu DN e a beber o primeiro café do dia.

Numa dessas quase madrugadas, por sinal enevoada, o Ti Agostinho, aproximou-se pra me dar os bons-dias e uns poucos de dedos de conversa.

O Ti Agostinho gosta de dizer que já fez nove dezenas há pra cima de cem meses e, que tem idade própria pra pensar e dizer tudo o que pensa. À noite costuma sentar-se no poial da porta e ler os recados das estrelas sobre o que diz respeito à lavoura e à prenhice do gado. Quando tem parceiro toca harmónica e canta ao desafio aquelas modas malandrecas costumeiras do barrocal algarvio onde viveu toda a vida, até decidir, por vontade e pé próprio mudar-se pró lar por si escolhido.

Falou-me do bom que é a brandura matinal para o amadurecimento dos figos, dos calos que lhe atormentam os pés, dos chatos que são alguns "velhos" lá do lar, da simpatia das funcionárias, do conforto das camionetas da carreira de hoje em dia, da carestia das contribuições, ...

Um comparsa passou e reclamou a sua presença para um joguinho de bisca lambida. Levantou-se e despedimo-nos. Já lá ia mas voltou. Mirou-me e remirou-me. Deu uma voltinha à cadeira onde me sentava. E outra ainda no sentido inverso. Pôs-me então a mão no ombro e pesaroso:

"- Conceiçanita, vomecê tá tã gorda. Velha. E feia."

Fez uma pausa. E, de novo:

"- Velha. Gorda. E feia! E era tã jeitosita..."

sábado, 25 de agosto de 2007

Sôdade de nos terra...

Os nossos andebolistas infantis da Assomada foram a Lagos ao Torneio Internacional de Andebol.

Para alguns deles foi a primeira saída de casa, para longe da família e do Bairro da Outurela.

Pessoalmente fiquei muito feliz por os "nossos putos" puderem ir passar uns dias divertidos à minha terra natal e, enquanto não desci até lá não descansei.

Entre jogos e idas à praia ainda deu para brincar nos insufláveis e ir até ao Zoo de Barão de São João.

É um espaço onde se sente que os animais são felizes e muito bem tratados. Os miúdos deliraram com os macacos, a passarada, a ceifeira debulhadora e também no parque infantil e nos jogos de cartas disputados nas mesas da zona de merendas.

Durante este saltitar percebi que um olhar sempre os seguia. Uma mulher jovem ainda, mestiça, zeladora da limpeza do lugar, ia deslizando um olhar furtivo e húmido na peugada dos rapazolas. Sorria ao seu sorriso e às suas graçolas e aproximava-se o mais possível para escutar as aventuras relatadas em crioulo de "badio" que nunca pisou chão caboverdeano.

A dada altura não resisti e abordei-a:

"- Você é de Cabo Verde, não é?

- É.

- E deixou filho na terra ...

- Foi..."

Lia-se nos seus olhos a "sôdade" de lá e de quem lhe rompeu do ventre.

"- Venha mamã, lanche connosco!"

Puxaram-na, abraçaram-na, quiseram tirar fotografias todos à sua roda.

Natalina falou-nos da recente vinda, da luta diária, do sonho quase a concretizar de mandar vir o único filho e da alegria de, pela primeira vez em terras lusas se ter sentido perto de casa, ali, naquela tarde solarenga, com os putos da Assomada, numa alegria contagiante, a crioular graças e desgraças da sua vida de campeões de jogos de escondidas e apanhadas.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Minha querida Lila!

A Lila sempre fez parte da minha vida. Já lá estava quando cheguei.

E, nessa época, há mais de quarenta anos já ela era, digamos, especial.

Usava minis muito minis, que arregaçava quando subia para uma mesinha de madeira onde gostava de dançar yé-yé, ao som beatleano que saia dum gira-discos plástico em azul turquesa.

Na cidade de província em que viviamos a Lila era do mais moderno e ousado que por lá se tinha imaginado. Era a cor no meio dos vários tons de cinzento, a sua gargalhada fácil distinguia-se pela praia fora e encantava a criançada das redondezas nos preparos para os anuais concursos de construções na areia organizado pelo DN ou, quando no final do Verão festejava o seu aniversário, com enormes salames de chocolate e jarros e jarros de limonada.

A Lila era a tia que todos quisemos nossa.

Já passou dos 60 mas a gargalhada fácil e a excentricidade mantêm-se. As saias, agora negras, roçam o chão, o eye liner continua a alongar-lhe os olhos e só da sua boca saiem verdades tão verdadeiras que vindas da boca de quaisquer outros seriam ofensa.

Sempre lidou muito bem com os assuntos da morte. Tão bem que há um tempo atrás resolveu comprar um talhão de terra no cemitério municipal. A pensar no futuro, contava-me ela. Só que houve quem na família se apressasse para o lado de lá e ela quiz ter o prazer de de lhe ceder a vaga.

Numa recente ida ao cemitério por ocasião de um funeral, reparei que o tal talhão se encontrava demasiado enfeitado de marmoreadas obras de arte sacra. Estranhei, uma vez que o infeliz ocupante não era dado a tais preparos e muito menos a tão elevados gastos.

Quando comentei o meu espanto com Lila, ela respondeu-me com toda a queitura que a caracteriza:

"- Eu é que escolhi a decoração e os santos. A terra é minha. Ele é só meu convidado!"

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Amor à espera ...

"Deve de ser bom saber que se tem um amor há espera..."

Falou baixito, contemplativa, enquanto juntas e de mãos dadas mirávamos os miúdos, que na parte baixa do jardim corriam sobre andas e rolavam relva abaixo.

O amor dela partiu há muito em busca de vida melhor, acreditando em promessas que nunca saberemos se se concretizaram. Ela ficou na espera, criando os seis filhos que "Deus já tinha dado". Lavou escadas, fez pastel pra fora, chorou , prometeu e cumpriu idas e vindas a santuário rezando pela volta, amou filhos e cria netos, comendo quantas vezes o pão que o dito amassa.

Nunca quiz voltar a acreditar nos homens nem nas suas promessas de amor. O tempo trouxe reforma e levou filhos para lá longe, trouxe inchaço nas pernas e névoa nos olhos. Entre as minhas mãos sinto o calo grosso de trabalho e as artroses dolorosas que quem passou a vida com as mãos na água dos outros.

"Com as minhas mininas vai ser diferente. Vão ter um amor à espera..."

Não respondo nada. Finjo nem ouvir. Ela insiste.

"Num é? Elas todas já têm homem..."

Passo-lhe o braço sobre os ombros.

"É... "

Trinquei o lábio e cerrei muito os punhos. Como eu tão bem sei o quanto lhe menti.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Diga porra qu'alivia!

Sempre desconfiei de quem nunca diz palavrões.

Não que seja apologista que se ande a distribui-los a torto e a direito, mas existem ocasiões em que são quase mesmo imprescindíveis, como expressão de raiva, de cólera, de surpresa, de desespero, até de alegria.

Conheço gente tão contida que em dezenas de anos nunca lhes ouvi uma palavra fora do sítio. Nem um "Com a breca!". Pode ser um grande disparate mas acredito que são menos felizes por isso. Não é plo mandar alguém à merda que se é mais ou menos feliz mas pelo soltar das emoções, pelo chorar de tristeza na perda de quem se ama, pelo gargalhar dum qualquer disparate, pelo barafustar quando se foi mal atendido.

Este assunto lembra-me sempre uma história passada num almoço de Natal. O Rosendo é o único ascendente masculino que me resta. É meu tio materno, bem disposto e excelente cozinheiro. Surpreende-nos em cada Natal com um novo petisco no centro da mesa e faz questão que seja eu, a sua única sobrinha, a servir a famelga toda. Há uns natais atrás, estávamos nós a iniciar este preparo, já com os ilustres comensais salivando pela surpresa quando, ao detapar o imenso tabuleiro, soltei um ai de dôr. Tinha-me queimado. O Rosendo, acabadinho de sentar ao lado do seu mais que querido cunhado, piscou-me o olho e disse:

- Diga porra filha, diga porra que alivia!

Eu disse. Acho que aliviou. Foi gargalhada geral.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Parabéns mana preta!

Ontem foi dia grande. A minha mana de coração passou os quarenta.

O dia amanheceu chuviscoso.

Dum pátio no Bairro do Alto da Loba, saía a procissão em honra da N. Sra das Graças, à maneira da cidade da Praia.

Os cetins contrastavam com o colorido dos poucos panos africanos enrolados à cinta das mais idosas. As comadres abraçavam-se perguntando novas dos afilhados. A cruz de madeira, rústica e genuína abria caminho bairro adentro e nós, subimos e descemos ruas acompanhando a procissão no seu lento progredir.

A chuva continuava a salpicar e, baixinho, quase em susurro, mas passo a passo, ouvia-se alguéns dizerem: "É chuva abençoada, como em nos terra".

Senti o quão bem vinda estava a ser aquela água, como se trouxesse um poucochinho do lá longe, de quem bem lhes quer lá no meio do oceano.

Saimos dali de alma cheia, não foi mana?

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Já sou grande?

Perdi a redacção mas, durante muitos anos imaginei esse momento bonito. Caiava uma casa térrea, de lenço na cabeça e com a ajuda dos filhos. A mangueira derramava água fresca rua abaixo e ouvia-se música alto. Soavam guitarras de dentro da casa. As cortinas, brancas e leves esvoaçavam janelas afora.

No nosso bairro todas as casas têm quintal. Hoje caiei o meu. Os miúdos divertiram-se bué, a mangueira lavou chão, plantas, pés e alma, o Carlos Paredes tocou só pra mim, muito alto, e as cortinas, brancas e leves esvoaçaram janelas afora .

Esta noite acenderei uma vela. Ou melhor duas velas. Uma na chaminé e outra no meu coração.

domingo, 12 de agosto de 2007

Quando eu fôr grande

Noutro dia, remexendo nos antigamentes, encontrei uma velha redacção da terceira classe. Dizia assim:

"Quando eu fôr grande não vou ser muito grande porque vou continuar a fazer coisas de pessoa pequena. Vou brincar e dizer graças como o meu pai e, se calhar, vou ter cabelos um bocadinho brancos como a minha mãe.
Eu acho que nunca vou ser uma senhora assim muito verdadeira, daquelas com os cabelos levantados, os sapatos altos, a cara pintada e um bocado toleironas.

Vou ter um trabalho e vou ter uma casa com quintal. Acho que vou ter filhos e que eles também vão ser alegres e diabretes.

Vou tocar e cantar músicas bonitas, vou abrir as janelas todas da minha casa, pôr um lenço na cabeça amarrado atrás e vou caiar o quintal. Os meus filhos vão regar as plantas com água fresca da mangueira de borracha.

Vai ser uma festa. Eu ainda não sei bem se é bom ser uma pessoa grande."

Nasci!

Anos, meses a fio desejei parir este blog. Mas a inércia fez com que o parto tivesse sido mais e mais adiado. Chegou hoje o dia de partilhar convosco as vivências, às vezes tristes, às vezes alegres da malta mais e menos miúda com quem vou vivendo quase à solta. Beijo gordo.
 
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